segunda-feira, julho 12, 2004

A Poetisa e o Filósofo - Uma Troca

Dentro dos meus braços
Os abraços hão de ser milhões de abraços.
Apertado assim, colado assim, calado assim.
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio de você
Longe de mim.

                                      - Tom Jobim, Chega de Saudade


Após alguns segundos de um envergonhado silênio, o Filósofo diz:
- Poetisa, temos que ir!
- Ir?! Mas pra onde? Mais do que já viajei para te encontrar? E por que tudo aqui é tão branco?

O Filósofo nota que à sua volta, e salvo os escritos no chão, tudo era branco. Não havia paredes, teto, céu, sombras, árvores, cadeiras, mesas... Nem sequer um copo d'água.

- Devemos popular o mundo. - O Filósofo, com ares visionários, enquanto erguia seu corpo sobre as duas pernas.
A Poetisa, que parecia flutuar sobre uma exuberância que de tão concreta chegava a ter cor - dourada, percebeu a dificuldade com a qual o Filósofo se levantava de um trono de madeira escura, adornado com jóias vermelhas e azuis - provavelmente rubis e jaspes, que tinha entalhados braços humanos muito fortes e grandes como os braços do próprio trono. O braço direito terminava discrepantemente em uma delicada mão feminina, que suportava um tinteiro e uma caneta de pena de pavão. O braço esquerdo terminava em uma garra, parecendo ser de um dragão, e suportava um livro.
- Por que a dificuldade em se levantar? - Perguntava a Poetisa.
- Já não sonho como antes. Vestir esta armadura limita os movimentos da minha criatividade. Minha casa já esteve cheia de objetos e realizações, mas agora está assim, em branco, por falta de uma musa.
- E então, já não estou aqui?
- Você? E como posso saber que não é mais uma paixão que vive às soltas, atacando os pobres criadores deste mundo de razões?
- Eu não sou uma paixão. Sou a Poetisa.
- Prove.
- Que obrigação eu tenho de lhe provar qualquer coisa?
- Nenhuma.
- Então. Está feito. Quer ou não quer minha companhia?
- Sim, é você mesma. - O Filósofo estava satisfeito, enfim.
A Poetisa nesse momento levantou a sobrancelha direita, e imaginou que prova teria ela dado, como qualquer um de vocês devem estar imaginando. Nem eu mesmo posso dizer qual foi a razão que o Filósofo encontrou para acreditar que aquela seria realmente a Poetisa. Ele apenas acreditou, e era como se fosse a verdade mais absoluta deste universo. Era ela mesmo.
- Quer ajuda? - a Poetisa finalmente ofereceu seus braços.
- Tenho que me resguardar, mesmo que seja de você, Musa. Meus sentimentos já foram severamente injuriados por muito tempo durante este tempo que não esteve aqui.
- Mas não vou te machucar!
- Não propositalmente. - O Filósofo, seguro de si.
- Ora, assim não há cooperação.

E ficaram na falácia durante horas a fio. A fina armadura com linhas desenhadas ao longo das placas imitava um corpo humano, perfeito, como uma estátua Grega. Havia também um escudo, preso às costas, que protegia o Filósofo de ataques sorrateiros. Neste escudo, alguns versos caligrafados diziam algo como que em voz alta, pra quem o lêsse. A voz parecia o rugir de um leão:

Faça neve ou frio
Calor ou fogo
Vulcão ou céu
Inferno ou trevas
Ou trégua
O FIlósofo jamais
Precisou usar
De espadas
Apenas escudos
Canetas, e papel
O Filósofo nunca
Deixou de amar.


E à medida que as vozes dos dois seres ressonavam pelo isolado espaço branco, apenas com rabiscos no chão e um trono de ébano, alguns arcos elétricos saltavam de um corpo para o outro. Este efeito jamais fora reconhecido ou documentado antes, mas a hipótese era de que o Filósofo e a Poetisa tivessem uma sintonia sobrenatural. Aos poucos, o peitoral da respeitosa e fria armadura do Filósofo estalou em rachaduras, indicando que a Poetisa vencia sua resistência. Por fim, o Filósofo reiterou:
- Poetisa, me prometa uma coisa.
- O que você quiser - Ela estava disposta a tudo pelo companheiro.
- Cuide bem do meu mais precioso bem.
- Cuidarei melhor do que qualquer outra pessoa jamais pensou antes.

Enfiando a mão direita por uma das rachaduras da grossa placa de peito, o Filósofo segurou firme no metal e puxou-o pra fora, partindo o frontal do tórax da armadura como vidro fino frente à sua vontade. Os estilhaços caíram no chão, indefesos e sem resistência alguma, repartindo-se mais ainda. No fim, os estilhaços eram apenas pó, novamente, e a surpresa da Poetisa foi descobrir o peito do Filósofo completamente ensangüentado e coberto de flechas, cravadas até a pena que dá estabilidade ao vôo. As flechas moviam suas asas, rebatendo-se como ferozes animais que dilasceravam a carne do resistente guerreiro dos ideais. Foram disparadas por impiedosas paixões que o caçavam até aqueles dias, e remoíam sua carne, renovando suas culpas, colocando em xeque todas as suas perspectivas e trazendo dúvidas às suas certezas. Isto fez com que o Filósofo parasse de escrever ou mesmo supor por um bom tempo. Seu coração já estava até virando pedra, para que conseguisse suportar a dor, resignado e infeliz. Seu sangue escorria como lágrimas, lamentando pelo pobre idealista. Um canto soou dos vultosos e brilhantes lábios da Poetisa, enquanto se aproximava do Filósofo em passos ritualísticos, sem tocar o chão:

A Poetisa apenas se aproxima,
Observa a tudo que contas
Com uma compaixão crescente,
E admiração, por tão bravo coração.
Tomo as tuas dores, Filósofo
Com as minhas próprias unhas
Com minhas garras de guerreira
E meus braços de fortaleza

Removo estas flechas - e removeu
Com suas dores azuis
Arremesso-as assim - e arremessou
Ao longe de suas mais
Distantes lembranças
Até que só veja o branco de paz
Até que só veja a mim.

E tomo-o em meus braços
Meu conforto te revelo
De estar contigo, Filósofo
Recria teu mundo
Sob minha inspiração
Não chore, não fuja
Porque agora estarás livre
Enquanto estiverdes
Ao meu lado.


O Filósofo, certo de que estava livre, chorou. Suas lágrimas eram uma cascata cristalina, e limpou todo seu corpo. A Poetisa apertava com força seu corpo contra o do Filósofo, e também chorou. Ambos sabiam que estavam então limpos pela sinceridade de seus sentimentos, e finalmente sorriram. Seus olhos se fecharam, e nada mais pôde ser visto, pois era dos olhos desses seres que emanava toda luz deste mundo.

A última frase deste conto foi a do Filósofo, que pela primeira vez em sua vida, disse:
- Você é a minha Poesia.

Safe Creative #0801110373769

Nenhum comentário: