Dentro dos meus braços
Os abraços hão de ser milhões de abraços.
Apertado assim, colado assim, calado assim.
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio de você
Longe de mim. - Tom Jobim,
Chega de SaudadeApós alguns segundos de um envergonhado silênio, o Filósofo diz:
- Poetisa, temos que ir!
- Ir?! Mas pra onde? Mais do que já viajei para te encontrar? E por que tudo aqui é tão branco?
O Filósofo nota que à sua volta, e salvo os escritos no chão, tudo era branco. Não havia paredes, teto, céu, sombras, árvores, cadeiras, mesas... Nem sequer um copo d'água.
- Devemos popular o mundo. - O Filósofo, com ares visionários, enquanto erguia seu corpo sobre as duas pernas.
A Poetisa, que parecia flutuar sobre uma exuberância que de tão concreta chegava a ter cor - dourada, percebeu a dificuldade com a qual o Filósofo se levantava de um trono de madeira escura, adornado com jóias vermelhas e azuis - provavelmente rubis e jaspes, que tinha entalhados braços humanos muito fortes e grandes como os braços do próprio trono. O braço direito terminava discrepantemente em uma delicada mão feminina, que suportava um tinteiro e uma caneta de pena de pavão. O braço esquerdo terminava em uma garra, parecendo ser de um dragão, e suportava um livro.
- Por que a dificuldade em se levantar? - Perguntava a Poetisa.
- Já não sonho como antes. Vestir esta armadura limita os movimentos da minha criatividade. Minha casa já esteve cheia de objetos e realizações, mas agora está assim, em branco, por falta de uma musa.
- E então, já não estou aqui?
- Você? E como posso saber que não é mais uma paixão que vive às soltas, atacando os pobres criadores deste mundo de razões?
- Eu não sou uma paixão. Sou a Poetisa.
- Prove.
- Que obrigação eu tenho de lhe provar qualquer coisa?
- Nenhuma.
- Então. Está feito. Quer ou não quer minha companhia?
- Sim, é você mesma. - O Filósofo estava satisfeito, enfim.
A Poetisa nesse momento levantou a sobrancelha direita, e imaginou que prova teria ela dado, como qualquer um de vocês devem estar imaginando. Nem eu mesmo posso dizer qual foi a razão que o Filósofo encontrou para acreditar que aquela seria realmente a Poetisa. Ele apenas acreditou, e era como se fosse a verdade mais absoluta deste universo. Era ela mesmo.
- Quer ajuda? - a Poetisa finalmente ofereceu seus braços.
- Tenho que me resguardar, mesmo que seja de você, Musa. Meus sentimentos já foram severamente injuriados por muito tempo durante este tempo que não esteve aqui.
- Mas não vou te machucar!
- Não propositalmente. - O Filósofo, seguro de si.
- Ora, assim não há cooperação.
E ficaram na falácia durante horas a fio. A fina armadura com linhas desenhadas ao longo das placas imitava um corpo humano, perfeito, como uma estátua Grega. Havia também um escudo, preso às costas, que protegia o Filósofo de ataques sorrateiros. Neste escudo, alguns versos caligrafados diziam algo como que em voz alta, pra quem o lêsse. A voz parecia o rugir de um leão:
Faça neve ou frio
Calor ou fogo
Vulcão ou céu
Inferno ou trevas
Ou trégua
O FIlósofo jamais
Precisou usar
De espadas
Apenas escudos
Canetas, e papel
O Filósofo nunca
Deixou de amar.E à medida que as vozes dos dois seres ressonavam pelo isolado espaço branco, apenas com rabiscos no chão e um trono de ébano, alguns arcos elétricos saltavam de um corpo para o outro. Este efeito jamais fora reconhecido ou documentado antes, mas a hipótese era de que o Filósofo e a Poetisa tivessem uma sintonia sobrenatural. Aos poucos, o peitoral da respeitosa e fria armadura do Filósofo estalou em rachaduras, indicando que a Poetisa vencia sua resistência. Por fim, o Filósofo reiterou:
- Poetisa, me prometa uma coisa.
- O que você quiser - Ela estava disposta a tudo pelo companheiro.
- Cuide bem do meu mais precioso bem.
- Cuidarei melhor do que qualquer outra pessoa jamais pensou antes.
Enfiando a mão direita por uma das rachaduras da grossa placa de peito, o Filósofo segurou firme no metal e puxou-o pra fora, partindo o frontal do tórax da armadura como vidro fino frente à sua vontade. Os estilhaços caíram no chão, indefesos e sem resistência alguma, repartindo-se mais ainda. No fim, os estilhaços eram apenas pó, novamente, e a surpresa da Poetisa foi descobrir o peito do Filósofo completamente ensangüentado e coberto de flechas, cravadas até a pena que dá estabilidade ao vôo. As flechas moviam suas asas, rebatendo-se como ferozes animais que dilasceravam a carne do resistente guerreiro dos ideais. Foram disparadas por impiedosas paixões que o caçavam até aqueles dias, e remoíam sua carne, renovando suas culpas, colocando em xeque todas as suas perspectivas e trazendo dúvidas às suas certezas. Isto fez com que o Filósofo parasse de escrever ou mesmo supor por um bom tempo. Seu coração já estava até virando pedra, para que conseguisse suportar a dor, resignado e infeliz. Seu sangue escorria como lágrimas, lamentando pelo pobre idealista. Um canto soou dos vultosos e brilhantes lábios da Poetisa, enquanto se aproximava do Filósofo em passos ritualísticos, sem tocar o chão:
A Poetisa apenas se aproxima,
Observa a tudo que contas
Com uma compaixão crescente,
E admiração, por tão bravo coração.
Tomo as tuas dores, Filósofo
Com as minhas próprias unhas
Com minhas garras de guerreira
E meus braços de fortaleza
Removo estas flechas - e removeu
Com suas dores azuis
Arremesso-as assim - e arremessou
Ao longe de suas mais
Distantes lembranças
Até que só veja o branco de paz
Até que só veja a mim.
E tomo-o em meus braços
Meu conforto te revelo
De estar contigo, Filósofo
Recria teu mundo
Sob minha inspiração
Não chore, não fuja
Porque agora estarás livre
Enquanto estiverdes
Ao meu lado.O Filósofo, certo de que estava livre, chorou. Suas lágrimas eram uma cascata cristalina, e limpou todo seu corpo. A Poetisa apertava com força seu corpo contra o do Filósofo, e também chorou. Ambos sabiam que estavam então limpos pela sinceridade de seus sentimentos, e finalmente sorriram. Seus olhos se fecharam, e nada mais pôde ser visto, pois era dos olhos desses seres que emanava toda luz deste mundo.
A última frase deste conto foi a do Filósofo, que pela primeira vez em sua vida, disse:
- Você é a minha Poesia.
