segunda-feira, janeiro 17, 2005

O Mantra Das Aparições

Tocava um jazz em sua cabeça. Bernard sabia que isso o ajudaria a manter a concentração. Chet Baker. "Queria ter vivido na época desse cara", pensou. A melodia de seu trompete era tão suave e cool quanto sua voz, que parecia querer mimetizar o instrumento. Sua chegada na superfície de Berta foi um rasante silencioso, em seu corpo translúcido. O plasma-traje o mantinha a salvo das condições adversas da superfície deste planeta quente, e sentia frio, devido à reação da anti-matéria com o nitrogênio.

"Quando será que vão inventar trajes mais amigáveis?"

O homem sempre reclamou, em sua jornada pelo progresso. Sempre esteve infeliz. Bernard era uma Aparição. A elite das forças armadas de seu governo. Seu traje conferia à sua matéria aparência semelhante à de um fantasma. Podia se manter invisível e incorpóreo por muito tempo, o que possibilitava a reentrada na atmosfera. A massa, livre de interferência física, era imperceptível para radares. O volume do corpo, irrisório para que pudesse ser considerado um invasor. Bern, como era chamado por companheiros de equipe, vestia um exoesqueleto com retrofoguetes e compensadores gravitacionais, que aumentavam ou diminuíam proporcionalmente a força de seus movimentos, para que parecesse estar sempre sob aceleração gravitacional padrão, a mesma do antigo planeta-mãe, uma vez chamado Terra, mas que depois da revolução planetária, teve seu nome original reconhecido: Gaia. Quando quisesse, poderia aumentar ou diminuir a força de seus movimentos, para casos de emergência. Além disso, o computador de bordo projetava imagens diretamente em sua retina, sobrepondo transucidamente o ambiente à sua volta. Era como ter um display à sua vista, o tempo todo. Dados climáticos, de carga do traje, fisiológicos, radioativos e psíquicos sob seu controle. Podia associar alertas e ações automáticas, de acordo com os eventos desejados. Receber injeções, ter sono induzido ou adrenalina administrada, relaxamento por meio de choques de baixa potência, alimentar-se, ouvir Miles Davis ou ver seu álbum de fotos familiar. Podia ser imerso em um sonho virtual, completamente livre de seu traje e com acesso a petabytes de informação, que lhe renderia praticamente qualquer tipo de sensação desejada. Podia virtualmente ir à uma praia da América do Sul, se quisesse. Podia beber cerveja. Podia ter mulheres. A comunicação de seu traje era realizada através de vibrações em níveis de dimensões-corda. Era instantânea, mesmo que estivesse a anos-luzes de seu planeta natal. Podia simplesmente telefonar para sua filha, Alexa, e saber como iam as coisas. Podia vê-la, e ter seu rosto perfeitamente projetado em vídeo com os sensores internos do capacete, como se estivesse sendo filmado por uma câmera. Podia até escolher o raio do ângulo sob o qual quisesse ser projetado. O que é isso! Podia ainda assim encontrar-se com ela, em um ambiente virtual. E tudo isso às custas do governo. Mas podia também bloquear qualquer tipo de comunicação, caso estivesse de saco cheio de tudo. Podia também atender aos chamados onde quer que estivesse: sonho, sono, vigília, acordado, em combate.

Ah, e as armas. Além da força extra, os próprios retro-foguetes também se transformavam em lança-chamas. Neo Napalm, para que pudesse queimar mesmo no vácuo. Era uma espécie de espuma cauterizante. A armatura possuía modos de movimento: Ar, Terra, Água, Fogo, Vácuo. Cada um com seus modos de batalha. Tinha os bons e velhos projéteis. As metralhadoras, que utilizavam a direção do seu olhar e a confirmação de seus impulsos neurais como mira e gatilho. Podia estar certo de que a precisão era quase perfeita. Inclusive com corretores de alvo, caso ele próprio ou o alvo estivessem em movimento. Para exércitos dessas armaduras, o funcionamento era um primor, já que todo o grupo compartilhava dados espaciais e dimensionais sobre os corpos no ambiente. Nunca se ouviu falar de um exército de mais de dez Aparições. E nunca se ouviu falar em exércitos de Aparições que perdessem batalhas. E nenhum deles jamais precisou apelar para suas bombas, que eram automaticamente ativadas caso o soldado fosse irreversivelmente morto. Sim, era possível trazê-los de volta. Afinal, tínhamos emplastros, morfina e desfibriladores, não tínhamos?

O Vácuo, tão presente e óbvio, havia sido descoberto como um importante elemento a apenas 100 anos. E um impressionante salto tecnológico era esperado, com tantas coisas que se podia fazer com o Vácuo. Como quando descobriram a Luz. Fibra ótica, chips óticos e tantas outras otiquices. Estas foram as velharias com as quais seus bisavós ficaram maravilhados, numa época em muito obsoleta.

Terra, Fogo, Ar, Água, Luz, Gravidade, Psiquê, Vácuo. O que mais viria?

"Quando será que vão inventar trajes mais amigáveis?" - Perguntava-se Bern.

Pensava em sua filha quando sobrevoava a rochosa superfície de Berta. Ela adorava as tomadas de sobrevôos que o pai enviava, via correio. E disparou mais uma dessas filmagens, enquanto pousava.

"Quando será que vão inventar trajes mais amigáveis?" - Perguntava-se Bern, ainda.

À medida que descia, enxergava a quilômetros de distância uma espécie de aranha metálica gigantesca, com suas dezenas de patas fincadas nas rochas quentes, e seu ventre debruçado sobre o chão escaldante de Berta. Lá era seu objetivo. Ao se aproximar do chão, o Receptáculo, como eram chamados os exoesqueletos, materializou-se, e Bern pisou em terra firme, finalmente. Materializar-se ou desmaterializar-se sempre causava uma espécie de tonteira momentânea, e Bern sempre voltava à fatídica pergunta: "Quando será que vão inventar trajes mais amigáveis?".

Com os sistemas de feedback negativo, a armadura se ajustava instantaneamente às condições ambientais, e Bernard simplesmente começou a caminhar na direção da Almand-Ginger. Ao ritmo de John Coltrane, Countdown.

"Os ânimos vão esquentar."

Safe Creative #0801160381486

Nenhum comentário: