sábado, fevereiro 26, 2005

Isso Não Se Ensina, Seu Bosta!

Chuveu que abarrotô
Foi tanta água que meu boi nadô


Vocês já assistiram a um show, ou pelo menos ouviram as músicas do Cordel do Fogo Encantado?

Ontem fui ver. Assistir ao show desses caras foi uma baita surpresa. Todo mundo havia me alertado o quão diferente é a arte desses pernambucanos. Fiquei satisfeito de ver: uma produção que não envolve somente a música, mas também a performance. É impossível assistir esses caras sem ter a impressão de que algo muito estranho e diferente aconteceu. É quase um teatro. Há música, há poesia (muita poesia), e há percursão (muita, muita percursão). Devia ter uns 30 tambores ao todo, de todos os tipos, no palco. E todos foram muito bem usados. Cordas? Só um violão, que em vários momentos também virava instrumento de percursão. Nossa, muito diferente mesmo, eles sabiam o que estavam fazendo em todo instante.

Ah, também havia as cordas vocais. Não sei o nome de ninguém ainda, mas como voz, não era tão impressionante. Em contraste, a performance desse vocalista "palhaço" foi alucinante. Ele era o próprio personagem das canções, cujos olhos brilharam enquanto o povo cantava as músicas. Eles próprios ficaram muito impressionados com a performance do público. As pessoas que foram assistir estavam muito mais interadas do que o esperado pela banda. Resultado: uma explosão de som nas batucadas infalíveis dos componentes, conduzidos pelo carisma do nosso palhaço, e sustentado por coros, pulos e palmas da platéia. Foi de arrepiar!


Semana que vem começam as minhas aulas.

A expressão tem importância mais do que vital na vida do artista. A formação, de fato, se dá muito mais pelo cotidiano do que enquanto se procura cientificar o saber. As maiores impressões, as lembranças mais traumáticas (não no sentido ruim, mas no sentido de marcar uma memória) certamente são a base do desenvolvimento de qualquer um. E lá estava eu, na escadaria dos doidões da Lapa, sentindo o cheiro de toda aquela loucura e percebendo a névoa de uma confusão, que em maior parte é desproposital. Todos os gestos e costumes me lembraram a mesma garota, que me marcou, mas não por eu ter sido apaixonado por ela - isso jamais aconteceria. É impressionante como todos os "broders" que fumam um baseado se parecem. E não importa se estão no Rio, ou em Sampa, ou se são de fora. Isso é intrigante. Tá, só um pouquinho intrigante ;)

E como conversar com doidões quase nunca leva a lugar nenhum, eu dispensei a companhia dos outros pra conversar com um molequinho que veio me vender chicletes. Ele tinha uns 11 anos. Havia outras crianças também, e resolvi parar pra conversar com elas, já que estavam sóbrias - mas não imaculadas. É realmente uma pena, que ensina tanto o que é bom quanto o que não é.

Vou inventar alguns nomes e vocês fingem que conhecem.

A Márcia disse que era mulher do Ricardo, que estava vendendo os chicletes. A Glória disse que era amante. Ricardo disse que era tímido, e que não gostava dessa brincadeira. Falou também que dava uns beijinhos por aí, mas que ficava com vergonha quando elas diziam isso na frente dos outros desconhecidos. Os três tinham 11 anos, em média.

Ricardo disse que preferiria dar o dinheiro que ganhava a gastá-lo com álcool, ou drogas. Ricardo, uma criança de 11 anos de idade, estava tão oprimido pelas experiências daquele lugar, que não me olhava nos olhos enquanto conversávamos. Com o tempo, ele pegou confiança e o olhar já não era mais uma preocupação. Enquanto isso, os doidões conversavam entre si, passando por vários assuntos, todos eles irrelevantes - categoricamente irrelevantes - que eu estava aturando antes.

Não estou discriminando nem culpando, dizendo que eles deviam procurar algo de útil pra fazer. Só que o assunto tava tão chato que preferi conversar com crianças. Ponto.

Ricardo foi a cena de descaso da noite, pra mim. Ele dependia de dois reais e quinze centavos pra voltar pra casa. Não sei se estava mentindo, mas resolvi fazer a minha parte, encarnando o beija-flor, e dar até pouco mais do que ele precisava, cedendo todas as moedas da minha carteira. Não fiquei com os chicletes. Podia ter sido mais ainda, claro. Mas esse pouco foi de uma satisfação enorme para o moleque. De serviço terminado, ele podia agora ficar ali sem fazer nada, e então ficamos conversando mesmo, enquanto ele não se decidia por partir. Deveria esperar outros amigos, eu acho. Voltariam pra Santa Cruz, ainda.

- Você tem irmãos?
- Nove.
- E consegue lembrar o nome de todos eles?? - AAAAah, mandei mal pra kct!
- Consigo, ué!

- O que você vai ser quando crescer?

A única coisa que ele sabia é que queria ser "alguém na vida, ué". Mas ele não sabia o que era ser alguém na vida. Não sabia o motivo. Não sabia nem por onde começar.

- Quero ser alguém na vida, ué. Só não sei ainda o que vou ser.

Resolvi compartilhar algumas das minhas experiências, e tentar marcá-lo positivamente, de certa forma. Expliquei a ele a fórmula básica: divirta-se com coisas que faça diferença na vida das pessoas. Pouco a pouco, ele conseguiu revelar seu sonho:

- Eu quero ser consertador de vídeo game.

Impulso? Não sei. Mas já havia sido diferente da resposta anterior.


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