quarta-feira, outubro 04, 2006

Acabou o Suco

Esse conto é muito, muito antigo. Deve fazer um ano e meio que o escrevi. Em todo o caso, ou eu não o publiquei anteriormente, ou o blogger simplesmente perdeu um post. Vamos lá:

Tudo começou quando acabou o suco de goiaba de caixinha. Eram dez horas da manhã, em pleno feriado no Rio de Janeiro. Vida de solteiro morando sozinho é assim: você acorda, faz algumas coisas e só vai tomar banho lá pelo meio dia, quando sente fome e quer almoçar mas está com preguiça de fazer comida. No meu caso, não é preguiça. É uma imperícia da peste: eu não sei cozinhar, e também não me interessa aprender.

Há quem me pergunte como eu consigo me virar na vida social, quando rola um rateio para o almoço na casa de um amigo. O que eu faço? Como participo? Ora, lavo louça. Não ligo para isso, e até gosto. Mas em casa, sozinho, fazer almoço e lavar louça? Definitivamente, não é para mim.

Voltando. Lá estava eu, na frente do computador editando uns textos - porque nestes dias me surgiram algumas idéias, e tenho colocado tudo no papel - quando fui até a cozinha pegar algo para beber. Pus um copo de suco de goiaba, que acabou com o que havia dentro da caixinha. Depois de matar o suco, a caixinha ficou ali, sozinha em cima da pia, com um vazio por dentro que dava até pena. Decidi que ela precisava ir pro lixo, e se juntar às outras como ela, indo pro "céu das caixinhas vazias de suco". Ela havia cumprido bem seu papel de matadora de fome das horas vagas, e merecia um funeral. Quem sabe se numa encarnação posterior não voltasse reciclada, e misturada às almas de outros produtos que também serviram dignamente aos seus consumidores?

Peguei a caixa, e olhei para o caixão - o cesto de lixo. Estava cheio. Impossível colocar qualquer coisa a mais. Lembrei que havia ficado de jogar aquilo tudo no fora da próxima vez que saísse. Mas, como todo cara relapso que se preze, eu havia esquecido. Por uns quatro dias, eu havia esquecido, e sempre insistia em entulhar mais coisas no cesto, pobrezinho. Já não conseguia nem mais fechar a tampa. Era a hora de um ato heróico: levaria o lixo para a lixeira do prédio, e depois colocaria um saco de lixo novinho em folha, no qual a caixa de suco de goiaba seria a primeira a descansar em paz.

Para o leitor de boa memória, é desnecessário dizer que eu estava como quem havia acabado de acordar, não é mesmo? "Pois é... Aí tem um problema", como diria Cassino - meu chefe - sempre com uma boa inspiração e visão de inúmeros lances à frente da minha. Era muito claro: como iria atravessar o corredor no estado em que me encontrava? Uma blusa azul-desbotada que parecia ter sido mastigada, cabelos para o ar e um short velho que doía? Resolvi dar um "jeitinho rápido", pois, como todo mundo sabe, quando você está em situação desprivilegiada no corredor do seu prédio, todos os vizinhos saem para te ver.

Fui até o banheiro, me olhei no espelho e pensei: nem a Medusa teria coragem de me olhar nos olhos. Passei uma água bem de leve no cabelo, peguei uma escova e lá fui eu lutar contra milhares de fios. Bom, pelo menos são menos do que quando eu era mais novo - acho que eles estão me abandonando de insatisfação. Quando enfim terminei, percebi que não parecia nem que tinha tentado pentear. Mas já estava bem melhor. Precisava de mais recursos. Um boné, quem sabe? Essa idéia, que está sempre entre as primeiras da fila de idéias salvadoras, é sempre ridícula, ainda mais quando você só quer atravessar o corredor. Para mim, seria pior se me vissem de boné, porque não haveria maneira de esconder o quanto estava preocupado, e detesto quando isso acontece, ainda mais no que tange minha beleza natural, da qual tenho tanto orgulho.

A idéia do boné foi pelo ralo - Há uns 6 anos, data do meu último boné, eu acho. Comecei a enganchar uma cabelo no outro, para pelo menos mantê-los baixos o suficiente. Assim, quem me visse de longe não ia notar nada, a não ser que fossem aves de rapina. Depois de uns minutos tentando ajeitar meu visual, me peguei pensando em como me preocupara com aquela trajetória ridícula de menos de dez metros, entre a porta do meu apartamento e a lixeira, no corredor.

"Mas era ida e volta", pensei. Agora é a hora de você me perguntar se sou algum lunático. Eu estava prevendo que todo o tráfego pedestre de Botafogo passaria por aquele corredorzinho, e que a distância até a lixeira era a de uma maratona. "Ida e volta", pensei novamente. "Mas e se me virem de costas? Eu não sei como está meu cabelo desse ângulo." Meu ego agonizava, tremendo encolhido ali, no canto do banheiro, com olhos vidrados e grandes. E percebi o quanto somos vuneráveis às condições tão normais de temperatura e pressão que nos assolam todos os dias.

Subitamente, um instinto heróico me tomou o espírito. "Eu vou do jeito que estou, e dane-se (dano-me) se alguém me vir assim". Afinal, a caixinha de suco de goiaba já estava se sentindo abandonada com o meu descaso. Corri para a cozinha, dei um nó no saco de lixo, tirei-o de dentro da lata e abri a porta, tudo de uma vez. A caixinha pulou de alegria, como um plebeu que vê o He-Man chegando para salvar a vila das maldades do poderoso Esqueleto. Um infortúnio, porque pareço mais com o vilão.

No meu som, tocava muito alto o álbum Breathless do Camel o tempo todo. Quando entrou a música Summer Lightning, me enchi de inspiração. Olhei o corredor, mas não parecia haver qualquer sinal de inimigos ou transeuntes. Nem mesmo as águias ou falcões. Pensei: "os inimigos sempre armam as emboscadas nas curvas dos corredores". Sorrateiramente, dei os primeiros passos para dentro daquele labirinto. Me sentia um herói de O Senhor dos Anéis. Mais especificamente o Frodo, que é mais fraco e tolo. Torcia mesmo que houvesse somente orcs no corredor, pois pelo menos são mais feios do que eu, e não poderiam zombar de minhas madeixas despenteadas. Com um passo após o outro, me aproximava da garganta do gigante (a lixeira) que engoliria todo o lixo com seu apetite voraz.

Suava frio. Durante todo o caminho, me perguntava quando os inimigos saltariam do nada para caçoar de mim, ou quando aquela vizinha gatinha sairia de seu apartamento e me veria novamente numa situação embaraçosa. Da primeira vez em que a vi, eu estava saindo para trabalhar e não notei que ela estava no corredor. Imitava um solo de bateria, com os barulhos, gestos e tudo mais. Foi patético.

Mas ali, com os pés descalços e o chão frio, não havia nada. Nem sequer a miúda torcida do Fluminense. Nem sequer a velhinha que costuma caminhar de vez em quando pelo corredor para exercitar, e sempre pergunta pela minha mãe como se me conhecesse desde que nasci, apesar de eu nunca tê-la visto até uns seis meses atrás, quando me mudei para o prédio. Em menos de trinta segundos, fui até a lixeira, enfiei o saco de lixo pelo buraco, fechei e num piscar de olhos estava em meu apartamento novamente: o Solo Sagrado.

Frustrante. Eu havia me preparado tanto para atravessar aqueles dez metrinhos, e nem uma viva alma foi me ver? Impossível. Logicamente, fui procurar o que mais havia de lixo para ser jogado fora. Havia o da sala e o do banheiro. Levei os dois, um a um, só para prolongar minha estadia no corredor. Não adiantou, o corredor era um deserto. "O mundo deve ter sido abduzido, não é possível!" - Eu exclamei, enquanto voltava da última viagem.

Num surto de loucura, fiz uma cambalhota no chão do corredor. E outra. Depois, dei uns passos, e fiz uma estrelinha. Ninguém apareceu, nem para aplaudir, nem para vaiar. Tomei mais distância, corri e dei um salto-triplo-escarpado, igualzinho à Daiane dos Santos, mas Botafogo inteiro já devia estar dentro de uma nave mãe à la Independence Day. Tirei a blusa e joguei no chão. Depois, dancei sensualmente e fiz um strip do restante. Estava nu, no corredor, e ninguém aparecia. Ora, será o Big Brother? Nem um camundongo. Nem uma formiga, sequer. Notei que estava indo longe demais quando lembrei que as portas tinham olhos. Olhos mágicos, por sinal.

Recolhi meus trajes de gogo boy do chão e voltei para o apartamento - não deu sequer para fazer um trocado - mas não fechei a porta. O Camel continuou comendo solto, e pus o som no último volume. Nem o Claro Hall tem um som tão alto quanto o meu! Estava pau da vida. Coloquei a maldita caixinha de suco de goiaba na lixeira com um porcaria de um saco de supermercado vazio, lugar mais que merecido para aquele resto de coisas - veio no saco, vai no saco. E finalmente, escrevi este conto inteiro com a porta escancarada, mas nem um vizinho veio reclamar.

Vai ver eles gostam de Camel.


3 comentários:

Nina Carolina Guimarães disse...

Vc jah postou esse, sim. Como assim, apagou ? Medo.
Abs

Anônimo disse...

Vc teve foi sorte, se a velhinha o visse, nu em pêlo, chamava a polícia e nunca mais o cumprimentaria....´hahahahaha
Excelente conto!
Vc como sempre com este dom de unir as palavras e fazer o pensamento de seus leitores viajar!!!! Parabéns!
Por favor continue meinformando qdo houver textos novos, sabe que sou sua fã desde aquele texto do tempo...que por acaso guardo autografado em meus guardados para qdo vc for famoso, alé do que hj já o é!
Vou baixar umas músicas do Camel para conhecer a banda...desculpe a ignorância, sabe como é...
Beijos,
da amiga Angel

Anônimo disse...

Opa! Opa! Opa!! Esse eu já li!! Mas valeu a releitura =o)